A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (30), por 283 votos a 155, o projeto que limita a demarcação de terras e fragiliza uma série de direitos dos indígenas. Houve uma abstenção. O texto vai ao Senado.
O projeto foi pautado no plenário em resposta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao anúncio do Supremo Tribunal Federal (STF) de retomada do julgamento que discute a implantação de marco temporal para demarcações de terras indígenas.
O chamado marco temporal das terras indígenas estabelece que os povos originários só têm direito às terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Na prática, a tese permite que indígenas sejam expulsos de terras que ocupam, caso não se comprove que estavam lá antes de 1988, e não autoriza que os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem voltem para as terras (entenda).
A proposta já passou pelas comissões da Casa. Deputados governistas tentaram tirar o projeto da pauta, mas o requerimento foi rejeitado por 257 votos a 123.
Pontos do projeto
Entre outros pontos, o projeto, relatado pelo deputado Arthur Maia (União-BA), flexibiliza o uso exclusivo de terras pelas comunidades e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade (leia mais abaixo).
O texto também:
cria um “marco temporal” para as terras consideradas “tradicionalmente ocupadas por indígenas”, exigindo a presença física dos índios em 5 de outubro de 1988
permite contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas
possibilita contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”
Protestos
Mais cedo, na Câmara, indígenas protestaram contra o projeto.
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e deputadas da chamada “bancada do cocar” Célia Xacriabá (PSOL-MG), e Juliana Cardoso (PT-SP), entre outros parlamentares, concederam entrevistas na Câmara dos Deputados para pressionar pela retirada do texto da pauta de votações.
Elas chamaram o texto de “genocídio legislado”.
“Hoje estamos aqui para pedir a retirada do projeto de pauta de votações no dia de hoje. O projeto representa sim um genocídio legislado, porque vai afetar diretamente povos isolados. Autoriza acesso de terceiros em territórios onde vivem pessoas, povos que ainda não tiveram contato com a sociedade”, disse Guajajara.
Marco temporal
Conforme o projeto aprovado, são consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição — isto é, 5 de outubro de 1988, eram simultaneamente:
- por eles habitadas em caráter permanente;
- utilizadas para suas atividades produtivas;
- imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
- necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Segundo o texto, a interrupção da posse indígena ocorrida antes de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada.
A exceção é para caso de conflito de posse no período. Neste caso, o marco temporal não seria aplicado em caso de expulsão dos indígenas. Especialistas avaliam, no entanto, que é difícil comprovar o conflito e a expulsão.
Entidades ligadas aos direitos dos indígenas criticam o dispositivo, pois a Constituição funciona retroativamente, o que resguarda os direitos territoriais violados antes de 1988.
Indenização a invasores
Outra mudança criticada por quem discorda do texto é a possibilidade de validar títulos de propriedade ou posse em área das comunidades indígenas. Neste caso, a desocupação será indenizada pelo Estado.
Segundo especialistas, isso permitirá que não indígenas que tenham invadido áreas de comunidades sejam indenizados.
Técnicos também avaliam que o dispositivo tenta proteger invasores de terras indígenas e veda sua retirada das terras enquanto o processo de demarcação não for concluído, criando um “direito de preferência do invasor”.
Outra crítica é que o dispositivo é inconstitucional, uma vez que, atualmente, não se reconhecem atos para ocupação, domínio e posse de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.
Usufruto exclusivo de terras
O relator excluiu da proposta, após sugestão da deputada Duda Salabert (PDT-MG), o artigo que previa que o usufruto da terra pelos indígenas não abrangia, por exemplo, recursos hídricos, potenciais energéticos, garimpagem, entre outros.
Maia manteve o dispositivo que permite que sejam desenvolvidas atividades nas reservas sem que a comunidades sejam consultadas.
O texto diz que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional. Também afirma que independem de consulta aos indígenas ou ao órgão indigenista federal competente, a Funai, as seguintes ações:
- instalação de bases
- unidades e postos militares e demais intervenções militares
- expansão estratégica da malha viária
- exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico
- resguardo das riquezas de cunho estratégico
Segundo especialistas, a previsão viola tratados internacionais, ratificados pelo Brasil.
Outra flexibilidade do uso das terras exclusivamente pelos indígenas é um dispositivo que admite a cooperação e contratação de terceiros (não indígenas) para a realização de atividades econômicas. O texto coloca algumas travas que devem ser cumpridas, por exemplo:
- a atividade deve gerar benefícios para a comunidade
- a posse dos indígenas deve ser mantida sobre a terra
- a comunidade precisa aprovar o contrato
- os contratos devem ser registrados pela Fundação Nacional do Índio (Funai)
A Constituição diz que compete à União a atividade de demarcar terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, porém afirma que elas são de sua “posse permanente”. Além disso, determina o uso “exclusivo” dos indígenas das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Ampliação de áreas
O texto também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Para justificar a regra, o relator argumentou, quando o projeto passou pela CCJ, que um julgamento de 2009 do Supremo sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, proibiu a ampliação da área como uma das 19 regras estabelecidas.
Quatro anos depois, porém, a própria Corte confirmou que o entendimento não tem efeito vinculante e não vale para todos os casos.
Retomada de terras
Ainda segundo a proposta, caso haja alteração nos traços culturais da comunidade, as áreas indígenas reservadas podem ser retomadas pela União para o “interesse público ou social” ou ainda destinar ao Programa Nacional de Reforma Agrária, com lotes “preferencialmente” a indígenas.
Fonte : G1 Globo